O post de hoje é inspirado em um texto que chegou assim, despretensiosamente, às minhas mãos, por meio de uma sensível amiga. Disse ela que tinha certeza de que eu adoraria lê-lo. Acertou em cheio.
O texto é de José Saramago, este renomado escritor português, que justifica ter ganho o Prêmio Nobel de Literatura de 1998 (só?), tamanha sensibilidade e perfeição de seus textos. Tem como título a intrigante metáfora: Da justiça à democracia, passando pelos sinos.
Obviamente, não chego aos pés de Saramago, mas dou-me ao luxo de parafraseá-lo quantas vezes entender possível, ao longo do que hoje resolvi escrever.
Em síntese, Saramago buscou provocar seu leitor a refletir sobre justiça e democracia, estes conceitos abstratos a que tantas vezes foram cenários de inúmeros pensamentos meus. Atualmente, o que penso sobre estas duas concepções não chegam perto da ideia original que tinha, muito antes de pensar que dedicaria minha vida profissional ao Direito.
Teoricamente, a sociedade defende a justiça com imenso afinco, esquecendo-se que, na prática, muito mais se lhe provoca a morte. Todos os dias. Agora mesmo, perto ou longe e até ao lado de nossa casa, alguém a está matando. E se há morte é como se a justiça nunca tivesse existido para os que nela confiam. Saramago provoca ainda mais, criticando ferrenhamente a justiça que se envolve em túnicas teatrais ou a que nos confunde com flores de vã retórica judicialista. Aquela que permite vendar-lhe os olhos ou viciar os pesos da balança. Aquela da espada que sempre corta mais para um lado do que para o outro. Quer exaltar, ao contrário, a justiça idealizada como uma companheira cotidiana da sociedade, para quem o justo seria o mais exato e rigoroso sinônimo de ético, uma justiça que chegasse a ser tão indispensável à felicidade do espírito com indispensável à vida é o alimento do corpo.
Quando tudo se encontra limitado ao simples exercício do cumprimento das obrigações cotidianas nada mais há senão o dócil e burocratizado sistema (in)consciente, culminando num adormecimento social flagrante. E, utilizando metáforas de forma magistral, Saramago ainda alerta que, assim, o rato dos direitos humanos acabará por ser implacavelmente devorado pelo gato da globalização econômica.
Com a democracia não é diferente. Classicamente, é um governo do povo, pelo povo e para o povo. Bela teoria, mais uma vez. Contudo, o que se tem é uma gestão falsamente democrática, concebida a partir de uma centelha chamada voto. É verdade que somos reconhecidamente cidadãos eleitores, capazes de votar, mas nossas escolhas são limitadas a segmentos partidários compostos apenas de relevância numérica e de incontáveis combinações políticas duvidosas.
Podemos, sim, desbancar um governo e pôr outro no lugar. Saramago provoca... será mesmo? Convida-nos a refletir afirmando que o voto não teve, não tem nem nunca terá qualquer efeito visível sobre a única e real força que governa e gira o globo: o poder econômico. Grande parte desse poder é gerenciado por gigantes que, de acordo com suas estratégias de domínio, distanciam-se, sem culpa, do bem comum, do coletivo e de tudo que, por definição, é próprio da democracia.
No fundo, no fundo, todos sabemos que é essa a crueldade real, mas por algum automatismo verbal ou mental nos forçamos a não enxergar o que está diante dos nossos olhos e continuamos a falar de democracia como se fosse algo vivo e dinâmico, real e concreto, quando ela é apenas um conjunto de formas ocas, inócuas e ritualizadas. E por uma espécie esquisita de auto proteção, esquecemos que alguma parcela de culpa nos cabe, e nos forçamos a também girar a roda da mesma maneira que dantes. Assim, reproduzimos e nos tornamos meros comissários políticos do poder econômico, com sua objetiva missão de produzir leis convenientes, para depois, envolvidas nos açúcares da publicidade oficial, serem introduzidas na sociedade sem demandar protestos, exceto pelas minorias baderneiras eternamentes descontentes. Sim, os descontentes são taxados de baderneiros. Simples assim. E o grito que poderia ser o início de um grande berro é sonoramente reduzido a ruído irritante, aquele que se quer desligar a qualquer custo.
E, enfim, tudo volta ao seu ciclo normal. Engano, mero engano. E não há pior engano do que o daquele que a si mesmo engana.
E o que têm os sinos a ver com tudo isso? Ah... só lendo Saramago pra saber...
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